quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Cultura, conceito e dogmas

Segue texto dos estudos sobre cultura no Brasil. Achei interessante a postagem para partirmos e pensarmos mais profundamente sobre diversos angulos tendo uma participação um pouco mais substanciosa na elaboração de projetos e eventos ditos culturais.

27 de Julho de 2008 by Carlos Henrique Machado Freitas

Descontruir é o caminho

Quando Mário de Andrade em seu livro, “Ensaio sobre a música brasileira”, faz uma observação sobre o seu desinteresse pelo sucesso pessoal de Villa Lobos e Pixinguinha, entre outras coisas, ele chama atenção para, diante das questões nacionais, os símbolos têm pouca eficácia na mudança real de um quadro implantado como política cultural. A correta percepção de Mário é construida no sentido de que a ordem vigente de aspectos doutrinários tinha sim suas válvulas de escape, assim como uma panela de pressão. Mesmo com a contundência de Villa Lobos que dizia, “Eu sou o folclore!”, numa clara observação de que a música do povo não está lá no povo, numa condição longínqua como é tratada com o imaginário primitivo de organização social, ao contrário, Villa Lobos, com essa frase, tenta de todas as formas, desconstruir essa idéia do artista descolado emocionalmente do seu mundo. Portanto, é bom que lembremos que não precisamos, necessariamente, estar naquele ambiente folclórico, pois ele está naturalmente em nós e não há detergente capaz de tirar essa coloração vibrante da nossa forma de agir e pensar cultura. Não há dúvidas, o Brasil se desenvolveu e se mantém debaixo da mão pesada e bem articulada de um fundamentalismo social que estrangula as vias de acesso das camadas historicamente mais pobres. Truncar o pensamento nacional é a forma mais eficaz de desarticular as unidades de consenso natural da sociedade . A sociedade constrói seus códigos, e o poder do Estado, impregnado de uma lógica de domínio, fabrica conceitos sob o manto da legalidade e, consequentemente, de uma representativdade forjada pela força do capital.
Pouco ou nada vale, dentro da nossa estrutura societária, símbolos como Machado de Assis, mesmo que a sua história seja carregada de códigos, sua obra será sempre admirada, mas o personagem, será sempre alvo de filtros. Sua condição social de origem é aspecto da delicada obra de exclusão de seu universo para que o conjunto de todos os seus aspectos não interfira na ordem vigente. Portanto, o tombamento de algumas comunidades quilombolas e suas expressões artísticas terá uso compartimentado para que o mesmo não altere socialmente a doutrina mátria. É politicamente correto, nos dias de hoje em que vivemos uma escassez de originalidade nas expressões culturais por obra de uma alinhamento promovido pela globalização, que preservemos as memórias num almoxarifado institucional, mas jamais damos qualquer assento com plena liberdade de ação a essas comunidades e suas culturas. Estas, por sua vez, estarão sempre vigiados de perto por nós que somos tão bem intencionados a ponto de nos dispormos a fazer a ponte entre a civilização constituida e a civilização excluida, sem essa vigilância, nada feito. Autonomia é uma palavra proibida dentro de todas essas questões. A nossa sociedade constituida, credenciada, sabe muito bem construir suas vias de acesso para fugir de qualquer embate. Estamos hoje assistindo a uma batalha, ponto a ponto, quando, por exemplo, um milionário é preso por suspeita de conduta criminosa e, imediatamente é solto e, nas redações da grande mídia, são exacerbados alguns erros técnicos que a polícia venha a ter cometido, na verdade, estamos assistindo a inversão de valores onde o crime é vitimizado e o punidor é o punido. As nossas lógicas instituicionas foram construidas nessa base, nesse jogo de cartas marcadas, mas o artista tem por obrigação o papel de trazer à luz uma nova discussão, uma nova perspectiva. Acho estranho, profundamente delirante, inútil, o discurso de individualização desse homem que, por um julgamento pretensioso ou covarde diante do seu próprio meio, se classifica como autônomo, como pêndulo universal, como homem, como artista de utilidade universal. Seus sensores estão ligados a um cosmos, como se os outros homens do mesmo planeta não tivessem as mesmas propriedades. Esse discurso tão primitivista, carregado de uma delicada arrogância, tem como principal característica a neutralidade diante das questões urgentes da arte como forma de expressão humana e de mudanças concretas. Há sim uma viagem a ser feita, custeada pelos frutos da nossa identidade. Arte nenhuma se constrói com o discurso de um “não sei lá de onde”, sou tudo, sou todos, é o discurso que dilui qualquer tipo de comprometimento diante do quadro que lhe é apresentado cotidanamente. Fugir por essa tangente facilitada pela ausência de um combate efetivo às questões de sobrevivência do homem que nos é mais próximo, é um ato de covardia duplamente mitificador diante das agudas e urgentes necessidades de mudança. Porque, além de não somar vozes para as necessárias mudanças, dá ao gênio auto-proclamado, assento confortável nos meios que dominam esse perverso pensamento. Tanto a lei Rouanet quanto as políticas de repasse direto de recursos do MinC às ações culturais, são sabotadas na fonte. Por que na fonte? Porque a doutrina já está lá e, na primeira gota de qualquer nascente brasileira haverá a mão sabotadora dessa doutrina social e, é bom que se diga, usa o artifício de “cultural” para manter as coisas como estão. E como sabemos que uma simples gota de veneno dentro de um balde de água limpa é suficiente para não termos mais a água pura, ficamos impossibilitados de abastecer o nosso corpo social dessa água que jorra nos quatro cantos do país.
Sou, particularmente, um apreciador da palavra “desconstruir”, até porque, construção de modelos socioculturais é obra concreta de uma bem pensada ordem constituída para engessar as insurreições. Nada adianta criarmos leis, uma após a outra. Ficar no nosso canto nos defendendo de cada ataque comandado por poucos botões de artilharia pesada, é um jogo desigual e inútil. O adversário está lá em seu calabouço há, exatos 508 anos, estrategicamente colocado no coração central das nossas instituições, assim como um forte, de onde se tem toda a visibilidade do povo. Então, qual é o caminho? É enfraquecer as suas bases, é literamente desconstruir esse organismo e reeditá-lo numa atitude revolucionária, do contrário, ficaremos nessa de tirar água do poço e tentando enxugar gelo. Este inimigo, que se faz invisível, existe e tem seus pontos fracos, por isso, foge do contato direto, do embate, ele está, assim como a maioria dos crimes lesa pátria deste pais, amparado pela legalidade de cúpula. Não adianta colocarmos tigers nos quilombos, transformando-os em grifes, pois dali será extraido pela sociedade de domínio apenas o que a ela interessa e fará uso mais uma vez dessa parcela excluida em benefício próprio. Portanto, qualquer artista com a crença na sua capacidade de universalização, será sempre um falastrão inútil diante das questões prioritárias da arte, que tem como necessidade original, ser a voz do seu mundo, de ser uma transformadora de lógicas constituidas. Os discursos além dessas fronteiras são feitos de costas, como num ato de deserção de uma luta urgentemente necessária, e são, na realidade, tão vagos e pretensiosos quanto o vampirismo brasileiro do além do aquém, e constroem, com a mesma ausência de consistência, frases como a famosa, “toca aqui e se ouve lá”, de João Sayad.
fonte: Instituto Pensarte

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